Teatro no ABC e Estúdio Roca visitam a Companhia da M.a.t.i.l.d.e. Uma longa entrevista registrada pelas lentes do fotógrafo Omar Matsumoto. E, desta vez, seguindo indicações dos leitores do blog, os vídeos que acompanham a entrevista trazem trechos que não estão transcritos ao longo do texto. Confira.
26 de fevereiro. 16h. Consulta a livros e a páginas da internet. Palavra-chave: tempestade. Resultados de busca: 1. alter-egodeOroro Munroe, personagem dehistória em quadrinhosdoUniverso Marvel Comics, membro dosX-Men; 2. (do latimtempestate, "tormenta, agitação"), estado de confusão na atmosfera, marcado porventosfortes, trovoadas, relâmpagos, raios e chuva. Podem aparecer isoladas, ou na forma de agrupamentos convectivos, de forma mais ou menos desorganizada, ou na forma de linhas de tempestades, chamadaslinhas de instabilidade. Acontecem quando há suficiente liberação de calor latente pela condensação de gotas de nuvem e cristais de gelo; 3. antecedido pelo artigo definido “a”, uma das ou a última peça de William Shakespeare, escrita em 1611. Conta a história de Próspero que instaura uma nova ordem na ilha para o qual foi mandado com sua filha Miranda, após ter sido destronado do Ducado de Milão por seu irmão Antônio. Com a ajuda de Ariel, um espírito servidor, Próspero arma uma tempestade e consegue se vingar dos usurpadores que navegam pela costa da ilha e manipular o destino dos náufragos. Uma narrativa de vingança. Uma dramaturgia repleta de conspirações, magia, razão, submissão, poder, paixão e liberdade.
Fim das buscas. A página do Word foi aberta. O gravador foi ligado. As vozes ecoaram marcando o meu primeiro encontro com alguns dos artistas da Companhia da M.A.T.I.L.D.E. (Erike Busoni, Evas Carretero, Yuri Cumer, Marcio Marçal e Magali Costa), em São Caetano do Sul, na noite de 23 de fevereiro. Enquanto os artistas falavam, o fotógrafo Omar Matsumoto recortava fragmentos do real. Ele congelava o tempo. Ele desenhava com luz.
Foi uma quarta-feira quente, sem nenhuma gota de chuva, na sede da Companhia, cuja trajetória é, no mínimo, tempestuosa.
Erike: Bom, posso começar?
Evas: Pode. Fica à vontade.
Erike: A gente fundou a M.A.T.I.L.D.E. no dia 25 de janeiro de 2004. A M.A.T.I.L.D.E. começou com um projeto na Faculdade Paulista de Serviço Social. Um projeto da Malu, que não está aqui hoje. Maria Lucia Salotti. Malu Salotti. Ela era aluna de serviço social da Faculdade Paulista e ela começou com um projeto de teatro dentro da faculdade, do teatro no resgate da cidadania através da arte. Eu acompanhava direto, mas não era ativo. Ela me chamou e falou: ‘meu, vamos montar um lance assim?’. Eu falei: ‘porra, legal’. E a gente resolveu montar Vidas Secas, porque a gente achava que tinha tudo a ver a relação social. E o Carlinhos Lira, aqui da cidade, tinha um adaptação de Vidas Secas, que foi a primeira adaptação reconhecida pela Heloisa Ramos que era detentora dos direitos do Graciliano, a mulher dele. E a gente montou lá na Faculdade Paulista com o intuito de: puxar uma galera que já fazia teatro, puxar pessoas que já atuavam na cidade e integrar isso com o Universidade Integrada, que era o projeto. Que eram alunos da própria cidade, da faculdade, ou pessoas da cidade que queriam desenvolver uma atividade na area. E foi muito legal, muito legal mesmo. A gente ficou em cartaz lá durante três meses, uma coisa que não se pratica no ABC; não existem temporadas teatrais aqui. E ai surgiu o lance de: ‘meu, por que a gente não funda uma Companhia?’
Para os artistas da Companhia, M.A.T.I.L.D.E. é mais do que um nome, é um Movimento Artístico para Transformação Integrado pela Liberdade, Direitos e Entretenimento. Ocupando o prédio da Faculdade Paulista de Serviço Social, o grupo montou depois de Vidas Secas, em 2005, o espetáculo Romeu e Julieta segundo a M.A.T.I.L.D.E., inspirado na obra de William Shakespeare, a partir de uma tradução feita por Marina Fossa e com adaptação da Cia, que chegou à época, a ter 53 integrantes participando das atividades do grupo.
Adeptos das siglas e refletindo a respeito do movimento teatral da região do Grande ABC (compreendida como as sete cidades: Santo André, São Bernardo, São Caetano, Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra), os integrantes da Companhia desenvolveram o projeto chamado A.N.T.R.O. (Atores necessitam de trabalho, respeito e organização).
Marcio: Um dos nossos objetivos com a M.A.T.I.L.D.E. era agremiar todos os coletivos que fazem arte num só teatro. Pra que todo mundo se assista, se veja, saiba o que está acontecendo e fomente a cultura da região.
Reverberando a ideia de conhecer os trabalhos realizados na região e como ainda ocupavam o prédio da Faculdade Paulista aos finais de semana, a Cia criou o ABC na M.A.T.I.L.D.E., a fim de ceder espaço para apresentações de outros grupos. O projeto durou três meses, com apresentações de 19 companhias diferentes e com direito a debates, ao final dos espetáculos, sobre o fazer teatral na região. Alimentados por essas discussões, os integrantes da M.A.T.I.L.D.E. decidiram dar mais um passo. Ou decidiram fincar o passo. Pesquisaram. Falaram. Conquistaram alguns olhares tortos. Colecionaram polêmicas. De alguma maneira estremeceram o chão. Montaram o espetáculo Terra, em que os atores diziam “na lata” aquilo que pensavam e ecoavam algumas das reclamações, sobre o funcionamento da cidade, que ouviram dos munícipes durante o processo de pesquisa para a produção.
Erike: A gente criou uns seminários, dividimos a América Latina em diversos setores: geografia, história, cultura, política, enfim. Fizemos vários seminários e desenvolvemos um espetáculo chamado Terra, que foi um espetáculo que a gente estreou no antigo Teatro Fábrica, teatro coletivo em São Paulo. Viemos pra cá, fizemos São Caetano, fizemos uma temporada em São Bernardo, fomos para o Festival Nacional de Teatro de Guaçuí, ganhamos uns prêmios legais lá, no Espírito Santo.
Marcio: Segundo eles nós ganhamos o Festival, né?!
Erike: É, enfim. (risos) Um espetáculo que deu muito resultado, mas que deu muito problema pra gente, porque a gente... Como eu disse é uma cidade provinciana, assistencialista, extremamente clientelista, reacionária ao máximo, então, tudo o que você diz aqui dentro, principalmente quando você vai pro público, eles te veem como um inimigo. Acho que hoje vem mudando. Eu sou bem otimista, mas eu acho que antigamente ela se dividia entre amigos e inimigos. É, é verdade. E em alguns momentos a direção, não a instituição, mas a direção da Fundação das Artes nos via como inimigos, digamos assim. E o Terra gerou uma polêmica absurda, a Secretaria de Cultura chamava a gente pra conversar, mas foi fundamental a gente ter feito aquilo, porque ai criou-se uma espécie de um diálogo. Mesmo que seja conturbado, criou-se um diálogo com a Secretaria de Cultura, com a administração. Eles não entendiam porque a gente fazia aquilo.
Evas: Muita gente chegou a dizer que era panfletário em alguns momentos.
Hoje os artistas entendem que o espetáculo foi um passo necessário, inclusive para abrir espaços de diálogos com o poder público depois da poeira abaixada. A Companhia cresceu. Os artistas aproveitaram para fazer uma reavaliação dos propósitos do grupo. Queriam uma sede própria e, por isso, em 2009, 13 pessoas locaram uma oficina mecânica abandonada, onde hoje funciona o Universo Cultural da M.A.T.I.L.D.E., um centro cultural privado, mantido por 9 pessoas e que abre espaço para que outros grupos apresentem seus espetáculos no ABC paulista. Além disso, cederam o espaço e participaram das discussões a respeito da criação da lei do Conselho Municipal de Cultura, em que o diretor da Companhia, Erike Busoni, foi eleito representante na area de teatro.
Erike: Esse Conselho Municipal hoje tem uma comissão técnica desenvolvendo a Lei do Fundo Municipal de Cultura. Se nós formos seguir as regras da Federação, a regra do Governo Federal, 1% do orçamento tem que ser para o Fundo. 1% dessa cidade são 8 milhões de reais. 8 milhões de reais para cultura nesta cidade é muito, não existe demando hoje pra isso. O Fundo Municipal de Cultura tem que ser deliberado pelo Conselho Municipal de Cultura. O Conselho Municipal de Cultura de São Caetano é o primeiro do país com 2/3 da sociedade civil e eleitos pela sociedade civil. Então, quer dizer, a gente conseguiu muita coisa, por mais que as pessoas tenham dito: ‘Ah, a M.A.T.I.L.D.E. fez o Terra’. O Terra foi muito bom, porque ele veio construindo tudo isso. Acho que fez com que nós conseguíssemos construir tudo isso. Porra, alugar um espaço e fazer a primeira reunião aqui dentro, com Secretaria, com representante da própria Fundação, com sociedade civil, pra desenvolver a lei do Conselho Municipal, pra posterior desenvolver a criação do primeiro Fundo Municipal de Cultura da cidade e que isso seja deliberado pelo Conselho que é eleito pela sociedade civil, porra, a gente consegue criar, de uma vez por todas, nesse município, uma democracia participativa e não representativa como sempre foi.
Mesmo sabendo que ainda existe uma fila de pessoas que não concordam com o discurso do grupo, mesmo sabendo que aquilo que falam de alguma forma ainda gera polêmica, a M.A.T.I.L.D.E. decidiu continuar tocando o barco, traçou metas em longo prazo e passou a investir na organização de ações dentro do espaço do Universo Cultural, como o Sarau, que vai para a 18º edição, e o projeto ABC na M.A.T.I.L.D.E., que acontece de dois em dois anos. Também investem na parceria para a produção de espetáculos na região com patrocínio e apoio de profissionais de outras cidades a fim de estabelecer um plano de carreira para os integrantes do grupo.
Erike: Em 2010, no ano passado, a gente fez um convênio com a Secretaria do Estado da Cultura e fizemos um espetáculo com a Norma Bengell, dirigido pelo Emílio Di Biasi. Um convênio e com apoio da Sabesp, produzido aqui pela Companhia da M.A.T.I.L.D.E. e mais um parceiro. Onde ai a gente resolveu estabelecer um plano de carreira para os atores da M.A.T.I.L.D.E.. Então, dois atores foram fazer contrarregragem nesse espetáculo. Ainda o ano passado, desenvolvemos o Casting, com Caco Ciocler, com Proac, com Banco do Brasil, com Net, apoiando através de lei Rouanet, com Porto Seguro, onde a galera da M.A.T.I.L.D.E. foi fazer técnica. Foi produzido aqui e, assim, a gente vai traçando um plano de carreira de também grandes produções. Não digo grandes produções comerciais. Eu digo grandes produções daquelas que a gente quer realizar.
Além do investimento em grandes produções, a M.A.T.I.L.D.E. também participa de um coletivo de grupos do ABC com o intuito de debater as necessidades do movimento, como a criação de leis de incentivo para as sete cidades. Cada reunião é realizada em um espaço diferente, tem duração de duas horas, com direito a 15 minutos iniciais para as lamentações e 15 minutos finais para a divulgação dos trabalhos. Todas as reuniões são fotografadas e, posteriormente, são organizadas e compartilhadas as atas dos encontros e as pautas para os próximos debates. Estes encontros são abertos para todos os grupos das sete cidades, desde que os participantes estejam prontos para colocar a mão na massa e colaborar efetivamente para a organização do movimento regional.
Os matildeiros se organizaram. Hoje conseguem manter o espaço funcionando e ter projetos aprovados com grandes apoiadores. Como é o caso da nova produção A tempestade.
Erike: Somos patrocinados pela Eletrobrás no espetáculo A tempestade, de Shakespeare. Dizem que é a última peça que ele escreveu, enfim, pelo menos pelos estudiosos. Direção do Emílio Di Biasi, projeto que a gente conseguiu patrocínio, com os atores da M.A.T.I.L.D.E. e mais 14 convidados. A gente reuniu uma puta equipe: música do André Abujamra, luz do Davi de Brito, figurino da Beth Filipec, direção do Emílio, com cenário do André Cortez. Uma equipe super legal. Produção daqui da M.A.T.I.L.D.E. mais dois parceiros que são duas produtoras independentes, C4 e Escritório das Artes. Toda a produção vem pra cá, por isso da reforma urgente, porque a gente começa a ensaiar dia 10 de março.
23 de fevereiro. 23h40. Os botões de voltar, avançar e pausar foram usados uma centena de vezes. Muitas palavras ficaram guardadas no gravador. Eles falaram intensamente. Agora meus ouvidos estão cansados. Olhando pela janela, às 23h46, vejo que não há indício de chuva forte para esta noite de sábado. Algumas pessoas adoram chuva, outras detestam. Atualmente algumas pessoas temem sofrer com os estragos que uma tempestade pode provocar. Mesmo sem ser especialista em previsões do tempo, posso dizer que, dentro de alguns meses, a região do ABC será invadida por uma tempestade. Proteja-se, prepare seu guarda-chuva ou, se preferir, saia de casa para se molhar.
A entrevista foi preparada no sábado, mas só foi publicada depois que o tempo virou.
Sonhos do Subúrbio – Uma Viagem Desafiadora Diante do Espelho
Da Redação
Em 2024, os artistas do ABC organizaram a 12ª Mostra de Teatro “Do ABC para o Mundo”, dessa vez homenageando o recente vencedor do Prêmio Nobel de Literatura Luis Alberto de Abreu. Como é de costume, durante três meses, representantes de diversos coletivos teatrais da região se reúnem no Universo Cultural da Matilde, no Espaço Cultural Casimiro de Abreu e na Escola Livre de Teatro para o intenso planejamento das atividades que têm o patrocínio do Pólo Comercial do ABC.
Quem teve a felicidade de se sentar em uma das platéias foi agraciado com um teatro vivo, generoso e de extrema qualidade estética. Não é a primeira vez que o ABC recebe um público tão grandioso. Na edição passada da Mostra, que teve 13 espetáculos em temporada pelas sete cidades, mais de oitenta mil pessoas foram alojadas nos hotéis da região para prestigiar esta ação que já faz parte do calendário cultural nacional, junto a ações como o Festival de Jazz do Ceará e a Exposição de Esculturas do Vale do Jequitinhonha. Na platéia, nomes consagrados do teatro brasileiro, Marcos Lemes, Carlos Lotto e Celso Frateschi, misturavam-se aos moradores e visitantes.
O GRITE de São Caetano do Sul, sob a direção de Kléber di Lázzare, trouxe ao palco do Teatro Chiquinho Medeiros (Sala 1, do ex Cine Teatro Carlos Gomes) o espetáculo “Nelson”, que teve a sua estréia em 2023 na Inglaterra. Com delicada orquestração de corpos e vozes extremamente afinados, o grupo narrou a vida de Nelson Rodrigues a partir de seus personagens mais vigorosos. Elevadores panorâmicos transportavam as vidas criadas pelo dramaturgo e apropriadas pelo GRITE, que é aclamado como um profundo conhecedor desse mestre de teatro brasileiro.
O Teatro da Conspiração, inflados pela Transpiração, agitou as ruas do ABC, por onde os moradores se enfileiraram para ver a história de “O homem que ganhou o mundo”. Essa poderia ser a história do próprio grupo que já teve seus espetáculos apresentados numa dezena de países. A diretora Solange Dias, que é também uma legítima representante da dramaturgia brasileira, lembrou da importância que teve a ocupação do Parque Escola na trajetória do grupo.
Também foi à rua o palco da Cia. do Nó. Dessa vez, o diretor Esdras Domingos, em liberdade há sete meses, após ser preso num protesto violento contra o Teatro Holográfico, mostrou para o ABC seus próprios sonhos. Coletados pelos atores, em pesquisa de campo realizada na região, os sonhos foram o suporte para a criação da bela dramaturgia de Renata Moré “Sonhos do Subúrbio – Uma Viagem Desafiadora Diante do Espelho”. Os passantes acompanhavam os quadros medievais com entusiasmo de criança, sonhando o futuro de suas próprias vidas.
O Grupo Garagem de Ribeirão Pires ofereceu residência ao longo de 2023 ao Grupo Polonês Lublin. Em conjunto, os dois grupos realizaram o elegante “Laura”. Este é também o nome da primeira filha do casal de dramaturga e diretor, Vivian e João Paulo, que esperam sua terceira filha. O espetáculo foi preparado especialmente para a ocupação da nova sede do grupo, “Teatro Garagem”, antigo estacionamento Glória no centro de Ribeirão Pires.
Com a mesma importância e tão agradável ao espírito foi o espetáculo do Teatro Singular que neste ano também realizou a 9ª Mostra de Teatro Estudantil. A Cia. Lona de Retalhos encantou a platéia com o infantil “Prometeu”. O Curupira de São Bernardo arrastou mais de mil pessoas para ver o sedutor PPC50, no novíssimo teatro “Alumínio”. O Teatro de Asfalto que se reencontrou em 2021 para a preparação de “Raspado nas Nuvens”, falou sobre a trajetória dos integrantes no espaço de tempo em que alçaram outros vôos. Tantos espetáculos, tantas cores, tantos momentos inesquecíveis, clicados pela lente inconfundível de Omar Matsumoto, fotos que ilustrarão o livro “A Vida no Teatro do ABC” da incansável e brilhante escritora Paula Venâncio.
Sentimos a falta da Cia. Komos, dos Jovens Atores de Diadema e de Eduardo Ulian, representantes enviados para a China, Espanha e Índia, respectivamente, para coordenar as atividades da Mostra, que acontecem simultaneamente nesses países. Joca, Mauro, Ana Paula, Euzébio, Ademir, Faustino, Eduardo, esperamos vocês em 2025.
Essa Mostra foi possível graças ao empenho de todos os artistas, do representante dos mesmos na co-administração dos 36 teatros da Região do ABC, James Silva, do Grupo Quartum Crescente, da Cia. Rocokóz que, em conjunto com Kléber Brianez, também coordenaram as atividades de circo-nano-tecnologia, de Rosana Ribeiro, curadora oficial da Mostra Internacional e de Thiago Freire que, mesmo com residência fixa em Mato Grosso do Sul, onde desenvolve sua pesquisa de etnomusicologia, desde 2010, é um perseverante e eficaz incentivador da Mostra. Mas o que pude perceber, da minha cadeira cativa, foi que essa ação só tem sido contínua pela amizade e verdadeira troca profissional que esses artistas e grupos desenvolveram ao longo de todos esses anos, lembrando que as conquistas mais preciosas e, portanto, humanas, depois do nascimento tem uma longa, às vezes árdua trajetória a percorrer.
Mais uma vez, ao final do último espetáculo, todos os artistas subiram ao palco para lembrar o Mestre Milton Andrade, indispensável figura na história do Teatro no ABC. Juntos, afirmaram que o teatro não mais apenas pergunta, além disso, oferece possibilidades de uma nova vida e que, sim, é verdade, é da poesia e do sonho que vive o homem.
Renata Moré
Tem formação em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo. Sua trajetória artística se deve à formação em dança clássica e ao teatro de grupo, onde atua desde 1992. Foi coordenadora geral do Centro de Dança de Santo André, de 2005 a 2008. É atriz, oficineira e dramaturga da Cia. do Nó, desde 1999.
Esdras Domingos
Tem formação em teatro, nas áreas de interpretação e direção, com ampla experiência na coordenação de núcleos de pesquisa teatral. Atualmente, é diretor teatral e coordenador artístico e pedagógico da Cia. do Nó.
Não sei, mas ele é. Assim como eu e você, de verdade. Mora naquilo que a gente tem de melhor, mas que insistimos em chamar de pior e “o” queremos esconder. Ele é feliz do jeito que é. A gente também, mas não falamos muito sobre isso. É mais divertido falar o contrário, contar nossas angústias, sofrimentos e aflições. Quando falamos das desgraças, a gente abafa o caso, desabafa e lava a alma. A sensação de colocar coisas ruins pra fora é muito boa. O que já não acontece com as coisas boas. Não é tão legal falar sobre elas.
Foi na tarde chuvosa do segundo dia do mês de fevereiro que eu e meu bem (o fotógrafo Omar Matsumoto) visitamos o teatro sede da Cia do Nó (R. Regente Feijó, 359A – Santo André). Estacionamos o carro e, depois daquela rápida corridinha na chuva, levantando a barra da calça e protegendo as bolsas de equipamento, entramos no “teatro da portinha”. É assim que o espaço é conhecido pelos moradores do bairro Vila Assunção. Atravessando a tal “portinha” e subindo as escadas, muitos dos moradores da região e alunos das escolas próximas ao espaço puderam e ainda podem, pela primeira vez, assistir e, mais do que isso, participar de um espetáculo de teatro...
Não sei, mas ele é. Assim como eu e você, de verdade. Mora naquilo que a gente tem de melhor, mas que insistimos em chamar de pior e “o” queremos esconder. Ele é feliz do jeito que é. A gente também, mas não falamos muito sobre isso. É mais divertido falar o contrário, contar nossas angústias, sofrimentos e aflições. Quando falamos das desgraças, a gente abafa o caso, desabafa e lava a alma. A sensação de colocar coisas ruins pra fora é muito boa. O que já não acontece com as coisas boas. Não é tão legal falar sobre elas.
Cara pintada, roupa diferente, máscara pequena. Tudo isso pra mostrar que é autêntico, que não usa máscara nenhuma, que é real e o quão “mascarados” nós somos. Eita palhaçada!
O riso é racional, está totalmente ligado à lógica. É impossível rir daquilo que não se entende. Existe um padrão para cada coisa nesta vida. Um padrão para a beleza, um padrão social, um padrão de vida, de profissão, de status, etc. Quando algum padrão é quebrado, abrem-se as portas para o terreno do inadequado. E é neste terreno que mora o filho torto de Deus – o palhaço.
Quando ele tropeça, a gente ri. Quando ele chora, a gente ri. Quando ele sofre, a gente ri. Quem é que não gosta de uma pitadinha de maldade? O ser humano é sádico, por natureza. Nada adianta aos puritanos de plantão, segurar o “riso maldoso” e se benzer depois disso ou pedir perdão pelo ato, pois mais um “x” foi acrescentado ao seu nome, no Grande Livro. Não dá pra fugir do instinto, daquilo que é puro. O palhaço não foge. Mas ele também não quer ter o nome marcado no Grande Livro. Então ele, inocentemente, faz exatamente a mesma coisa que a gente faz. Aprendeu assim. E a gente ri disso. Ri porque é ridículo. Assim como uma criança que tem cinco anos não consegue enganar ninguém e é engraçado vê-la tentando. A gente ri do palhaço e ri da criança porque no fundo a gente ri da nossa própria imagem, porque a gente também tenta enganar. A diferença é que somos espertos o suficiente para não sermos pegos. Ou pelo menos é nisso que queremos acreditar.
E, juntando o inadequado com a inocência, o palhaço também pode falar de tudo. Sabemos das verdades ridículas do nosso mundo, da sociedade em que vivemos, mas isso a gente fala baixinho porque pode pegar mal falar alto uma coisa destas. Nunca se sabe quem está ouvindo. Mas se é o palhaço que fala, a gente ri, porque para ele não pega mal e todo mundo sabe que aquilo que ele está falando é verdade. Mas ele, coitado, “só pode ser palhaço nessa vida, então não importa muito o que ele diz.”
Como grande parte das coisas do mundo, senão todas, a figura do palhaço também foi banalizada. Hoje o vemos nos faróis, nas portas de lojas fazendo propagandas, nos ônibus e trens pedindo esmolas, na televisão tratando o seu público como babaca.
Palhaço é ofício. E como todo ofício, tem uma função. Precisa de treino, esforço, estudo e dedicação. Tem que ralar, suar a camisa!
E como é gostoso ver um bom palhaço. Aquele que não faz tipo, que não força outra voz, que não finge um personagem. Aquele que depois de tanto tempo de vida e trabalho, mantém viva a chama da inocência e da sinceridade. E a platéia gosta deste palhaço. E não gosta pelo que ele sabe fazer, mas pelo que de fato ele é. Alguém que escolheu como profissão, a menor máscara do mundo.
Kleber Brianez
Palhaço, ator, artista educador e dublador. Pesquisa e pratica a linguagem do palhaço, desde 1998, com grandes conhecedores desta arte, como Bete Dorgam, Silvia Leblon e os Doutores da Alegria. É sócio fundador e coordenador geral do Grupo Operação de Riso, que leva o trabalho do palhaço para dentro do ambiente hospitalar. Hoje é integrante da Associação Pró Projeto Cultural Brasileiro, onde pesquisa e pratica a linguagem do improviso, utilizando-se do método do Teatro Esporte, sob coordenação geral de Vera Achatkin.
Foi na tarde chuvosa do segundo dia do mês de fevereiro que eu e meu bem (o fotógrafo Omar Matsumoto) visitamos o teatro sede da Cia do Nó (R. Regente Feijó, 359A – Santo André). Estacionamos o carro e, depois daquela rápida corridinha na chuva, levantando a barra da calça e protegendo as bolsas de equipamento, entramos no “teatro da portinha”. É assim que o espaço é conhecido pelos moradores do bairro Vila Assunção. Atravessando a tal “portinha” e subindo as escadas, muitos dos moradores da região e alunos das escolas próximas ao espaço puderam e ainda podem, pela primeira vez, assistir e, mais do que isso, participar de um espetáculo de teatro...
Foi na tarde chuvosa do segundo dia do mês de fevereiro que eu e meu bem (o fotógrafo Omar Matsumoto) visitamos o teatro sede da Cia do Nó (R. Regente Feijó, 359A – Santo André). Estacionamos o carro e, depois daquela rápida corridinha na chuva, levantando a barra da calça e protegendo as bolsas de equipamento, entramos no “teatro da portinha”. É assim que o espaço é conhecido pelos moradores do bairro Vila Assunção. Atravessando a tal “portinha” e subindo as escadas, muitos dos moradores da região e alunos das escolas próximas ao espaço puderam e ainda podem, pela primeira vez, assistir e, mais do que isso, participar de um espetáculo de teatro.
No dia da entrevista, ao subir as escadas, a primeira coisa que vimos foi um galpão com telhas à mostra e piso de madeira, com rotunda e pernas de tecido preto (cortinas que delimitam o espaço cênico), algumas varas (estruturas metálicas) para iluminação e cenário, arquibancadas móveis de madeira para acomodar a platéia. Atrás das arquibancadas, um espaço com adereços, figurinos, algumas almofadas, pufes, sofá... Enquanto o fotógrafo montava seu equipamento, o casal de artistas Esdras Domingos e Renata Moré, criadores da Cia do Nó, se acomodaram em dois pufes no centro do espaço cênico. O gravador foi ligado e começamos nossa prosa. Não foram muitas perguntas, mas foram muitas histórias, por isso este texto não respeitará regras jornalísticas, tampouco seguirá uma estrutura de perguntas e respostas ou de um texto super dinâmico para a internet (mesmo que isso represente o fracasso do blog!). Embora seja impossível reproduzir o encontro, estas palavras digitadas e os vídeos (uma opção para aqueles que preferem acompanhar a história pela voz dos próprios artistas) são o resultado de uma tentativa de compartilhar a trajetória de um casal que começou sua carreira em grupos de teatro amador da região, estudou e trabalhou em São Paulo até que decidiu buscar um espaço no ABC paulista onde pudessem fazer teatro. E foi entre 1994 e 1997, no colégio Singular, que a dupla de artistas começou a vislumbrar o que hoje é a Cia do Nó: Renata: E ai começou a surgir uns teatros mais... De uma forma mais forte o teatro dentro da escola. A gente transformou ali num... A gente, o Esdras é que coordenava ali, mas eu já tava também, num núcleo de estudos teatrais que tinha a produção do Singular. O Singular patrocinava cenário, figurino e o Esdras era contratado para ser o diretor. Então a gente tinha o espaço do Singular. E ai a gente ocupou a casa Antares, que na época era um casarão. Que era uma casa mesmo onde tinha um infantil de semana e a gente ficava lá durante, à noite. Ficava à noite e aos fins de semana.
Em 1997 o colégio Singular suspendeu o patrocínio, por conta da crise econômica da era Collor. E quem não sentiu os impactos do plano Collor? O casal decidiu, então, montar um monólogo chamado Fantina, que ficou em cartaz durante seis anos, e buscar novos espaços para ensaiar:
Renata: A gente escreveu uma história, então a gente tinha esse monólogo que foi a “Fantina” que a gente ensaiava no Alpharrabioe umas pessoas chamaram a gente pra fazer um outro espetáculo que a gente ensaiava no espaço dos servidores públicos da prefeitura. E desse espetáculo começou... Saiu a Companhia do Nó, porque a gente já tava com uma pessoa... A pessoa que coordenava tudo foi embora. A pessoa que convidou todos nós. Ai nós ficamos né, um olhando pra cara do outro. Então nós vamos montar um grupo e levar o trabalho adiante. E ai a gente já tinha dois espetáculos que era o “O nome de uma flor” e a “Fantina”. Duas dessas pessoas, que nós éramos quatro, éramos dois casais, o Douglas [de Araújo] e a Carina [Prestupa] tinham uma empresa de eventos [Lúdica Comunicação Teatral] que eles têm até hoje. Então eles resolveram ter um espaço da empresa, que a gente logo se mudou pra lá e aí começou a utilizar como um espaço também do grupo.
Esdras: E acabou administrando. Aí o Nó passou a administrar esse espaço.
Renata: Passou a ser do Nó, em menos de um ano, o espaço, na verdade, virou da administração da Cia do Nó. Isso foi em noventa e... 2000.
A arte de administrar um espaço
Cumprindo mais um dos objetivos do grupo, os artistas alugaram um primeiro galpão no bairro Santa Terezinha, em Santo André, mas, depois de um ano, perderam tudo por conta de uma enchente. Mudaram para outro espaço, na Rua Lino Jardim, onde ficaram durante três anos e meio e, finalmente, fixaram sede no bairro Vila Assunção, onde estão há sete anos desenvolvendo seus projetos. Para que a estrutura do Nó se consolidasse foi preciso além de desenvolver o lado artístico, pensar a Companhia de forma administrativa, pondo em prática aquilo que os artistas Esdras e Renata chamam de organização criativa, baseado nos conceitos de Domenico De Masi e Teixeira Coelho e que fazem parte do dia a dia do grupo há quatro anos:
Renata: Eu fui trabalhar como administradora na Cultura. Então eu fui para o Departamento de Cultura de Santo André e fui aprendendo uma porção de coisas também na raça, porque, se você pegar os funcionários públicos que trabalham ali, ninguém tem formação e fazem, às vezes, na boa vontade e, às vezes, não tem a boa vontade. E aí eu comecei a estudar comecei a desenvolver mesmo um pensamento de administração de espaços culturais. Então uma das coisas que a gente tenta fazer aqui no Nó é... Como a gente não pode contar com uma política cultural que a gente possa usufruir dos serviços dela, que nosso aluno, então, nosso aluno ele vem aqui ele faz uma oficina de iniciação teatral, ele pode assistir um espetáculo na prefeitura que tenha um espetáculo bacana lá pra ele ver? Então não completa o ciclo. A ideia da gente foi que a gente pudesse ter todos os serviços aqui, que a gente pudesse oferecer. Que a gente pudesse produzir espetáculos nossos aqui, que a gente pudesse dar aula aqui, que a gente pudesse circular com nossos espetáculos, oferecer uma experiência semiprofissional para quem tivesse interessado em seguir a carreira. Então, olha os quatro pilares do Teixeira Coelho, receber grupo de fora...
Esdras: Fazer temporada no ABC, porque não existe essa possibilidade. Nos espaços municipais não tem. Você pega um final de semana. Não consegue ficar três meses em cartaz no ABC. Isso 11 anos atrás menos ainda. E hoje também, você não consegue uma data, porque você tem um teatro municipal pra servir pra todas as artes, fora os eventos. É uma quantidade, uma demanda enorme de gente querendo vir em cada area: teatro, dança, música, tudo isso. Então o que acontece? Fica uma rotatividade gigante e ai você tem o hábito, você cria uma política cultural, um imaginário de um evento: “Ai o que é que tem esse final de semana?”, “Ah, tem fulano da rede Globo”, “Ah, então eu vou”, “Ah, não, tem um stand-up que eu vi na internet!”, “Ah, então eu vou!”, “Ah o que é que tem?”, “Ah, não conheço, não vi, então, não vou”. Não faz parte do cotidiano dele a possibilidade de frequentar o teatro. A não ser no lazer ou em um evento de ver uma pessoa. Ele nem vai pelo espetáculo, a impressão que eu tenho é essa.
Renata: E o que aconteceu também foi que a gente queria fazer temporada. A princípio a gente queria ter o espaço porque a gente queria colocar o espetáculo em temporada. Só assim ele ficaria bacana. E no ABC.
Esdras: Porque é do imaginário, o recorte para o subúrbio e, a partir daí, circular. Não tinha espaço. Espaço para ensaiar também. E ai quando você tem um espaço você ganha esse tempo de ensaio, de entrar e sair, material que você tem, que você pode experimentar.
Renata: A gente começou a fazer as temporadas, que a gente queria tanto depois de ter o espaço tal e elas não davam certo. As pessoas não vêm. E aí uma hora a gente parou, porque a gente fazia. Então, domingo, 11 horas da manhã, a gente punha o nosso infantil em cartaz e ficava um tempão. Vinha alguns, tal, mas, a gente já tinha se constituído como ONG. Nosso objetivo social é dar acesso, oferecer acesso do teatro para a população do ABC. A gente parou e: a gente tá fazendo isso de verdade? A gente não tá porque as pessoas não vêm; a gente não tá chegando nelas. Como é que de fato a gente participa da vida das pessoas na cidade? É através do espetáculo? Não. Não acontece. Ele vem assiste uma vez. Tem aquele cara que assiste mais de uma vez, mas não é de fato isso. E a gente já dava algumas aulas no Nó, mas porque a gente gostava de dar aula, mas não tinha um compromisso. Era um “plano b” da Companhia do Nó a formação. E a gente falou: é no curso que de fato a gente participa da vida da comunidade e ela participa da nossa. Levantou os projetos de cursos na mesma importância dos projetos dos espetáculos. E foi aí que a gente começou a formar uma rede de pessoas que trabalhavam juntas. E a ideia da organização criativa é que, justamente ele, como no livro do Teixeira Coelho, é um lugar onde você tem os projetos que se complementam. Um projeto reforça o outro. Então o aluno vem fazer aula aqui, mas ele assiste aos nossos espetáculos e de outras pessoas que dão referência pra ele. Uma coisa ajuda a outra e você trabalha com o melhor de todo mundo. Põe todo mundo pra criar, pra, põe todo mundo pra trabalhar todo mundo junto mesmo.
O subúrbio em cena
Hoje, a Companhia do Nó oferece 120 vagas para os cursos de teatro, divididos em sete módulos. Para os artistas e alunos, além de um contato com o teatro, o espaço tornou-se um local de reconhecimento, de criação de identidades, de discussão sobre a região do ABC e essas reflexões passaram a direcionar as pesquisas artísticas do grupo:
Esdras: A gente estuda a história do ABC muito, lê muito, a história do teatro muito no ABC e conversa muito com as pessoas do ABC. E aí, a partir dessas discussões nós vamos encontrando um tema e dentro desse imaginário. A gente já reconhece a autoestima baixa, já reconhece né, não tem identidade mesmo porque está entre a capital e o interior. É mesmo uma ideia de penumbra, de uma cidade, hoje, dormitório. Virou um pouco uma cidade fantasma sim, porque a indústria foi embora, de um milhão e 100 mil pessoas hoje tem quinhentas e trinta, quinhentas e cinquenta mil pessoas em Santo André.
O perfil dos alunos também vem se transformando. Hoje metade dos alunos é do entorno e a outra metade é de pessoas que vem de outras cidades do Grande ABC em busca de um primeiro contato com o teatro ou de um estudo mais direcionado para atores que já possuem algum tipo de vivência na area. Os trabalhos resultados das oficinas viram espetáculos que ficam em cartaz na sede da Companhia por, em média, 10 meses. E os alunos-artistas recebem pelo trabalho. Essa estratégia, como afirma Esdras, é uma tentativa de suprir uma carência da região:
Esdras: O que a gente faz aqui é potencializar. Olha eu quero seguir carreira ou, sei lá, eu quero desinibir, eu quero. Então tá bom, nós vamos potencializar esse seu projeto aí e vamos colaborar até o fim. E a gente já tem aluno aqui que não tem condição de fazer um curso superior e quer ser ator profissional e aí a gente vai com ele até o fim. E ai o que vai acontecer: ele vai entrar na Companhia do Nó, nós vamos dar um jeito de comprovar a hora dele aqui dentro e ele vai tirar esse DRT e não é porque ele não consegue fazer uma universidade ou um curso técnico. Ele não tem dinheiro. Não consegue fazer a Fundação das Artes daqui de São Caetano, porque custa, sei lá, cem reais. Não tem, não tem condição. Não tem dinheiro pra tomar ônibus. E quer ser ator. E vai ser. E você vê que o cara estuda, não falta nas aulas, o cara tem a vocação mesmo. A gente fica aqui 10, 12, 14 horas ensaiando, ele não tem uma ilusão, ele sabe que é o suor e o trabalho dele que vai fazer com que ele viva dessa profissão e você tem que chegar até o fim com ele. E é o que eu acho mais difícil. Nem é mais difícil, porque ele tá tão próximo aqui do nosso cotidiano que eu to achando até mais fácil.
Orgulhoso, Esdras ainda afirma que alguns de seus alunos, mesmo com todas as dificuldades, foram para universidade, se formaram e voltaram para compartilhar com os ingressantes aquilo que aprenderam dentro e fora da Companhia, como é o caso do hoje mestre da Escola Livre, Cristiano Gouveia que começou a fazer teatro no espaço do Nó.
Com o pensamento voltado para as necessidades do público local a Companhia movimenta o entorno e conquista parceiros, empresas e comerciantes que fornecem serviços e material com desconto ou mesmo como fruto de doação. A permanência de mais de uma década em atividade ininterrupta dão, aos dois artistas, uma visão sobre o movimento artístico local e, de certa forma, faz da Companhia uma propagadora de esperança para os novos grupos e artistas:
Renata: Além de ser moradora aqui do ABC que já tem essa baixa autoestima, né, tem uma coisa que circula aí que a gente tem dentro da gente. E além de ser do ABC, ainda trabalha na area da Cultura que também tem. E aí o que eu acho que é difícil e, vejo isso nos colegas de profissão aqui, a gente se desvencilhar da cultura da reclamação. A gente fica muito preso ao que a gente não tem e olha muito pouco para o que a gente tem. Tá na gente o não ir pra frente, é a gente que faz isso. Eu acho que pelo menos 50 por cento é da nossa cabeça que pensa... A gente tem que rever esse pensamento. E como a gente não tem muitas publicações, a gente se vê pouco, a gente se olha pouco. E olha muito pro umbigo. “Ah, porque a prefeitura não tem política cultura”. Não tem, não vai ter. A nossa política, a cultura política que a gente tem no Brasil tá muito longe de se tornar alguma coisa, então a gente tem que fazer, né. A gente precisa fazer, porque se a gente quer continuar trabalhando na area, então eu acho que isso foi uma coisa difícil de entender. Acho que quando a gente entendeu isso a gente começou a caminhar com as próprias pernas.
E, assim, com um passo de cada vez, o casal Esdras e Renata caminha, conquista os moradores da Vila Assunção e abre a “portinha” para uma experiência de fruição artística. Se antes, ter um grupo de teatro no bairro poderia soar estranho, hoje faz parte do cotidiano daquelas pessoas a possibilidade de atravessar a rua em uma tarde de sábado e ir ao teatro. Como o menino João, morador do bairro, que há sete anos assiste a tudo como quem saboreia um doce caseiro. Como é o caso dos muitos moradores que doam sacolas de perucas, chapéus antigos e fantasias de carnaval para os artistas vizinhos.
Quem dera essa moda pegasse. Quem dera o seu Valdir, marceneiro responsável pelo cenário do novo espetáculo da Companhia, se entusiasmasse como o menino João e levasse a família pela primeira vez ao teatro. Quem dera.
O gravador foi desligado, guardamos os equipamentos e fomos embora cheios de histórias. Do dia da entrevista até então, não tivemos notícias do seu Valdir. Mas a sorte está lançada. Só nos resta torcer e pedir em voz alta na esperança de sermos ouvidos: Vá ao teatro, seu Valdir!