domingo, 13 de fevereiro de 2011

As histórias do “teatro da portinha”

por Paula Venâncio
fotos: Estúdio Roca


Esdras Domingos e Renata Moré
Foi na tarde chuvosa do segundo dia do mês de fevereiro que eu e meu bem (o fotógrafo Omar Matsumoto) visitamos o teatro sede da Cia do Nó (R. Regente Feijó, 359A – Santo André). Estacionamos o carro e, depois daquela rápida corridinha na chuva, levantando a barra da calça e protegendo as bolsas de equipamento, entramos no “teatro da portinha”. É assim que o espaço é conhecido pelos moradores do bairro Vila Assunção. Atravessando a tal “portinha” e subindo as escadas, muitos dos moradores da região e alunos das escolas próximas ao espaço puderam e ainda podem, pela primeira vez, assistir e, mais do que isso, participar de um espetáculo de teatro.
No dia da entrevista, ao subir as escadas, a primeira coisa que vimos foi um galpão com telhas à mostra e piso de madeira, com rotunda e pernas de tecido preto (cortinas que delimitam o espaço cênico), algumas varas (estruturas metálicas) para iluminação e cenário, arquibancadas móveis de madeira para acomodar a platéia. Atrás das arquibancadas, um espaço com adereços, figurinos, algumas almofadas, pufes, sofá... Enquanto o fotógrafo montava seu equipamento, o casal de artistas Esdras Domingos e Renata Moré, criadores da Cia do Nó, se acomodaram em dois pufes no centro do espaço cênico. O gravador foi ligado e começamos nossa prosa. Não foram muitas perguntas, mas foram muitas histórias, por isso este texto não respeitará regras jornalísticas, tampouco seguirá uma estrutura de perguntas e respostas ou de um texto super dinâmico para a internet (mesmo que isso represente o fracasso do blog!). 
Embora seja impossível reproduzir o encontro, estas palavras digitadas e os vídeos (uma opção para aqueles que preferem acompanhar a história pela voz dos próprios artistas) são o resultado de uma tentativa de compartilhar a trajetória de um casal que começou sua carreira em grupos de teatro amador da região, estudou e trabalhou em São Paulo até que decidiu buscar um espaço no ABC paulista onde pudessem fazer teatro. E foi entre 1994 e 1997, no colégio Singular, que a dupla de artistas começou a vislumbrar o que hoje é a Cia do Nó:
Renata: E ai começou a surgir uns teatros mais... De uma forma mais forte o teatro dentro da escola. A gente transformou ali num... A gente, o Esdras é que coordenava ali, mas eu já tava também, num núcleo de estudos teatrais que tinha a produção do Singular. O Singular patrocinava cenário, figurino e o Esdras era contratado para ser o diretor. Então a gente tinha o espaço do Singular. E ai a gente ocupou a casa Antares, que na época era um casarão. Que era uma casa mesmo onde tinha um infantil de semana e a gente ficava lá durante, à noite. Ficava à noite e aos fins de semana.


Em 1997 o colégio Singular suspendeu o patrocínio, por conta da crise econômica da era Collor. E quem não sentiu os impactos do plano Collor? O casal decidiu, então, montar um monólogo chamado Fantina, que ficou em cartaz durante seis anos, e buscar novos espaços para ensaiar:

Renata: A gente escreveu uma história, então a gente tinha esse monólogo que foi a “Fantina” que a gente ensaiava no Alpharrabio e umas pessoas chamaram a gente pra fazer um outro espetáculo que a gente ensaiava no espaço dos servidores públicos da prefeitura. E desse espetáculo começou... Saiu a Companhia do Nó, porque a gente já tava com uma pessoa... A pessoa que coordenava tudo foi embora. A pessoa que convidou todos nós. Ai nós ficamos né, um olhando pra cara do outro. Então nós vamos montar um grupo e levar o trabalho adiante. E ai a gente já tinha dois espetáculos que era o “O nome de uma flor” e a “Fantina”. Duas dessas pessoas, que nós éramos quatro, éramos dois casais, o Douglas [de Araújo] e a Carina [Prestupa] tinham uma empresa de eventos [Lúdica Comunicação Teatral] que eles têm até hoje. Então eles resolveram ter um espaço da empresa, que a gente logo se mudou pra lá e aí começou a utilizar como um espaço também do grupo.
Esdras: E acabou administrando. Aí o Nó passou a administrar esse espaço.
Renata: Passou a ser do Nó, em menos de um ano, o espaço, na verdade, virou da administração da Cia do Nó. Isso foi em noventa e... 2000.


A arte de administrar um espaço

Cumprindo mais um dos objetivos do grupo, os artistas alugaram um primeiro galpão no bairro Santa Terezinha, em Santo André, mas, depois de um ano, perderam tudo por conta de uma enchente. Mudaram para outro espaço, na Rua Lino Jardim, onde ficaram durante três anos e meio e, finalmente, fixaram sede no bairro Vila Assunção, onde estão há sete anos desenvolvendo seus projetos. Para que a estrutura do Nó se consolidasse foi preciso além de desenvolver o lado artístico, pensar a Companhia de forma administrativa, pondo em prática aquilo que os artistas Esdras e Renata chamam de organização criativa, baseado nos conceitos de Domenico De Masi e Teixeira Coelho e que fazem parte do dia a dia do grupo há quatro anos:

Renata: Eu fui trabalhar como administradora na Cultura. Então eu fui para o Departamento de Cultura de Santo André e fui aprendendo uma porção de coisas também na raça, porque, se você pegar os funcionários públicos que trabalham ali, ninguém tem formação e fazem, às vezes, na boa vontade e, às vezes, não tem a boa vontade. E aí eu comecei a estudar comecei a desenvolver mesmo um pensamento de administração de espaços culturais. Então uma das coisas que a gente tenta fazer aqui no Nó é... Como a gente não pode contar com uma política cultural que a gente possa usufruir dos serviços dela, que nosso aluno, então, nosso aluno ele vem aqui ele faz uma oficina de iniciação teatral, ele pode assistir um espetáculo na prefeitura que tenha um espetáculo bacana lá pra ele ver? Então não completa o ciclo. A ideia da gente foi que a gente pudesse ter todos os serviços aqui, que a gente pudesse oferecer. Que a gente pudesse produzir espetáculos nossos aqui, que a gente pudesse dar aula aqui, que a gente pudesse circular com nossos espetáculos, oferecer uma experiência semiprofissional para quem tivesse interessado em seguir a carreira. Então, olha os quatro pilares do Teixeira Coelho, receber grupo de fora...
Esdras: Fazer temporada no ABC, porque não existe essa possibilidade. Nos espaços municipais não tem. Você pega um final de semana. Não consegue ficar três meses em cartaz no ABC. Isso 11 anos atrás menos ainda. E hoje também, você não consegue uma data, porque você tem um teatro municipal pra servir pra todas as artes, fora os eventos. É uma quantidade, uma demanda enorme de gente querendo vir em cada area: teatro, dança, música, tudo isso. Então o que acontece? Fica uma rotatividade gigante e ai você tem o hábito, você cria uma política cultural, um imaginário de um evento: “Ai o que é que tem esse final de semana?”, “Ah, tem fulano da rede Globo”, “Ah, então eu vou”, “Ah, não, tem um stand-up que eu vi na internet!”, “Ah, então eu vou!”, “Ah o que é que tem?”, “Ah, não conheço, não vi, então, não vou”. Não faz parte do cotidiano dele a possibilidade de frequentar o teatro. A não ser no lazer ou em um evento de ver uma pessoa. Ele nem vai pelo espetáculo, a impressão que eu tenho é essa.
Renata: E o que aconteceu também foi que a gente queria fazer temporada. A princípio a gente queria ter o espaço porque a gente queria colocar o espetáculo em temporada. Só assim ele ficaria bacana. E no ABC.
Esdras: Porque é do imaginário, o recorte para o subúrbio e, a partir daí, circular. Não tinha espaço. Espaço para ensaiar também. E ai quando você tem um espaço você ganha esse tempo de ensaio, de entrar e sair, material que você tem, que você pode experimentar.
Renata: A gente começou a fazer as temporadas, que a gente queria tanto depois de ter o espaço tal e elas não davam certo. As pessoas não vêm. E aí uma hora a gente parou, porque a gente fazia. Então, domingo, 11 horas da manhã, a gente punha o nosso infantil em cartaz e ficava um tempão. Vinha alguns, tal, mas, a gente já tinha se constituído como ONG. Nosso objetivo social é dar acesso, oferecer acesso do teatro para a população do ABC. A gente parou e: a gente tá fazendo isso de verdade? A gente não tá porque as pessoas não vêm; a gente não tá chegando nelas. Como é que de fato a gente participa da vida das pessoas na cidade? É através do espetáculo? Não. Não acontece. Ele vem assiste uma vez. Tem aquele cara que assiste mais de uma vez, mas não é de fato isso. E a gente já dava algumas aulas no Nó, mas porque a gente gostava de dar aula, mas não tinha um compromisso. Era um “plano b” da Companhia do Nó a formação. E a gente falou: é no curso que de fato a gente participa da vida da comunidade e ela participa da nossa. Levantou os projetos de cursos na mesma importância dos projetos dos espetáculos. E foi aí que a gente começou a formar uma rede de pessoas que trabalhavam juntas. E a ideia da organização criativa é que, justamente ele, como no livro do Teixeira Coelho, é um lugar onde você tem os projetos que se complementam. Um projeto reforça o outro. Então o aluno vem fazer aula aqui, mas ele assiste aos nossos espetáculos e de outras pessoas que dão referência pra ele. Uma coisa ajuda a outra e você trabalha com o melhor de todo mundo. Põe todo mundo pra criar, pra, põe todo mundo pra trabalhar todo mundo junto mesmo.



O subúrbio em cena

Hoje, a Companhia do Nó oferece 120 vagas para os cursos de teatro, divididos em sete módulos. Para os artistas e alunos, além de um contato com o teatro, o espaço tornou-se um local de reconhecimento, de criação de identidades, de discussão sobre a região do ABC e essas reflexões passaram a direcionar as pesquisas artísticas do grupo:

Esdras: A gente estuda a história do ABC muito, lê muito, a história do teatro muito no ABC e conversa muito com as pessoas do ABC. E aí, a partir dessas discussões nós vamos encontrando um tema e dentro desse imaginário. A gente já reconhece a autoestima baixa, já reconhece né, não tem identidade mesmo porque está entre a capital e o interior. É mesmo uma ideia de penumbra, de uma cidade, hoje, dormitório. Virou um pouco uma cidade fantasma sim, porque a indústria foi embora, de um milhão e 100 mil pessoas hoje tem quinhentas e trinta, quinhentas e cinquenta mil pessoas em Santo André.


O perfil dos alunos também vem se transformando. Hoje metade dos alunos é do entorno e a outra metade é de pessoas que vem de outras cidades do Grande ABC em busca de um primeiro contato com o teatro ou de um estudo mais direcionado para atores que já possuem algum tipo de vivência na area. Os trabalhos resultados das oficinas viram espetáculos que ficam em cartaz na sede da Companhia por, em média, 10 meses. E os alunos-artistas recebem pelo trabalho. Essa estratégia, como afirma Esdras, é uma tentativa de suprir uma carência da região:

Esdras: O que a gente faz aqui é potencializar. Olha eu quero seguir carreira ou, sei lá, eu quero desinibir, eu quero. Então tá bom, nós vamos potencializar esse seu projeto aí e vamos colaborar até o fim. E a gente já tem aluno aqui que não tem condição de fazer um curso superior e quer ser ator profissional e aí a gente vai com ele até o fim. E ai o que vai acontecer: ele vai entrar na Companhia do Nó, nós vamos dar um jeito de comprovar a hora dele aqui dentro e ele vai tirar esse DRT e não é porque ele não consegue fazer uma universidade ou um curso técnico. Ele não tem dinheiro. Não consegue fazer a Fundação das Artes daqui de São Caetano, porque custa, sei lá, cem reais. Não tem, não tem condição. Não tem dinheiro pra tomar ônibus. E quer ser ator. E vai ser. E você vê que o cara estuda, não falta nas aulas, o cara tem a vocação mesmo. A gente fica aqui 10, 12, 14 horas ensaiando, ele não tem uma ilusão, ele sabe que é o suor e o trabalho dele que vai fazer com que ele viva dessa profissão e você tem que chegar até o fim com ele. E é o que eu acho mais difícil. Nem é mais difícil, porque ele tá tão próximo aqui do nosso cotidiano que eu to achando até mais fácil.




Orgulhoso, Esdras ainda afirma que alguns de seus alunos, mesmo com todas as dificuldades, foram para universidade, se formaram e voltaram para compartilhar com os ingressantes aquilo que aprenderam dentro e fora da Companhia, como é o caso do hoje mestre da Escola Livre, Cristiano Gouveia que começou a fazer teatro no espaço do Nó.
Com o pensamento voltado para as necessidades do público local a Companhia movimenta o entorno e conquista parceiros, empresas e comerciantes que fornecem serviços e material com desconto ou mesmo como fruto de doação. A permanência de mais de uma década em atividade ininterrupta dão, aos dois artistas, uma visão sobre o movimento artístico local e, de certa forma, faz da Companhia uma propagadora de esperança para os novos grupos e artistas:

Renata: Além de ser moradora aqui do ABC que já tem essa baixa autoestima, né, tem uma coisa que circula aí que a gente tem dentro da gente. E além de ser do ABC, ainda trabalha na area da Cultura que também tem. E aí o que eu acho que é difícil e, vejo isso nos colegas de profissão aqui, a gente se desvencilhar da cultura da reclamação. A gente fica muito preso ao que a gente não tem e olha muito pouco para o que a gente tem. Tá na gente o não ir pra frente, é a gente que faz isso. Eu acho que pelo menos 50 por cento é da nossa cabeça que pensa... A gente tem que rever esse pensamento. E como a gente não tem muitas publicações, a gente se vê pouco, a gente se olha pouco. E olha muito pro umbigo. “Ah, porque a prefeitura não tem política cultura”. Não tem, não vai ter. A nossa política, a cultura política que a gente tem no Brasil tá muito longe de se tornar alguma coisa, então a gente tem que fazer, né. A gente precisa fazer, porque se a gente quer continuar trabalhando na area, então eu acho que isso foi uma coisa difícil de entender. Acho que quando a gente entendeu isso a gente começou a caminhar com as próprias pernas.




E, assim, com um passo de cada vez, o casal Esdras e Renata caminha, conquista os moradores da Vila Assunção e abre a “portinha” para uma experiência de fruição artística. Se antes, ter um grupo de teatro no bairro poderia soar estranho, hoje faz parte do cotidiano daquelas pessoas a possibilidade de atravessar a rua em uma tarde de sábado e ir ao teatro. Como o menino João, morador do bairro, que há sete anos assiste a tudo como quem saboreia um doce caseiro. Como é o caso dos muitos moradores que doam sacolas de perucas, chapéus antigos e fantasias de carnaval para os artistas vizinhos.

Quem dera essa moda pegasse. Quem dera o seu Valdir, marceneiro responsável pelo cenário do novo espetáculo da Companhia, se entusiasmasse como o menino João e levasse a família pela primeira vez ao teatro. Quem dera.
O gravador foi desligado, guardamos os equipamentos e fomos embora cheios de histórias. Do dia da entrevista até então, não tivemos notícias do seu Valdir. Mas a sorte está lançada. Só nos resta torcer e pedir em voz alta na esperança de sermos ouvidos: Vá ao teatro, seu Valdir!

Um comentário:

  1. postagem muito interessante, parabéns. Bem legal mesmo. Fico feliz por estar vivendo tudo o que foi dito. Como aluno da Cia do Nó, me sinto orgulhoso de ter a liberdade de permanecer no projeto e me sentir parte dele. Parabéns Paula pelos comentários e Omar pelas fotos. Ahhh dentro em breve quero ver novamente "A Padaria" que até hj é o meu espetáculo favorito e fez temporada conosco lá no Nó, hein hehehe.... Um grande abraço.

    Juliano de Assis

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