por Paula Venâncio
fotos: Estúdio Roca
26 de fevereiro. 16h. Consulta a livros e a páginas da internet. Palavra-chave: tempestade. Resultados de busca: 1. alter-ego de Ororo Munroe, personagem de história em quadrinhos do Universo Marvel Comics, membro dos X-Men; 2. (do latim tempestate, "tormenta, agitação"), estado de confusão na atmosfera, marcado por ventos fortes, trovoadas, relâmpagos, raios e chuva. Podem aparecer isoladas, ou na forma de agrupamentos convectivos, de forma mais ou menos desorganizada, ou na forma de linhas de tempestades, chamadas linhas de instabilidade. Acontecem quando há suficiente liberação de calor latente pela condensação de gotas de nuvem e cristais de gelo; 3. antecedido pelo artigo definido “a”, uma das ou a última peça de William Shakespeare, escrita em 1611. Conta a história de Próspero que instaura uma nova ordem na ilha para o qual foi mandado com sua filha Miranda, após ter sido destronado do Ducado de Milão por seu irmão Antônio. Com a ajuda de Ariel, um espírito servidor, Próspero arma uma tempestade e consegue se vingar dos usurpadores que navegam pela costa da ilha e manipular o destino dos náufragos. Uma narrativa de vingança. Uma dramaturgia repleta de conspirações, magia, razão, submissão, poder, paixão e liberdade.
Fim das buscas. A página do Word foi aberta. O gravador foi ligado. As vozes ecoaram marcando o meu primeiro encontro com alguns dos artistas da Companhia da M.A.T.I.L.D.E. (Erike Busoni, Evas Carretero, Yuri Cumer, Marcio Marçal e Magali Costa), em São Caetano do Sul, na noite de 23 de fevereiro. Enquanto os artistas falavam, o fotógrafo Omar Matsumoto recortava fragmentos do real. Ele congelava o tempo. Ele desenhava com luz.
Foi uma quarta-feira quente, sem nenhuma gota de chuva, na sede da Companhia, cuja trajetória é, no mínimo, tempestuosa.
Erike: Bom, posso começar?
Evas: Pode. Fica à vontade.
Erike: A gente fundou a M.A.T.I.L.D.E. no dia 25 de janeiro de 2004. A M.A.T.I.L.D.E. começou com um projeto na Faculdade Paulista de Serviço Social. Um projeto da Malu, que não está aqui hoje. Maria Lucia Salotti. Malu Salotti. Ela era aluna de serviço social da Faculdade Paulista e ela começou com um projeto de teatro dentro da faculdade, do teatro no resgate da cidadania através da arte. Eu acompanhava direto, mas não era ativo. Ela me chamou e falou: ‘meu, vamos montar um lance assim?’. Eu falei: ‘porra, legal’. E a gente resolveu montar Vidas Secas, porque a gente achava que tinha tudo a ver a relação social. E o Carlinhos Lira, aqui da cidade, tinha um adaptação de Vidas Secas, que foi a primeira adaptação reconhecida pela Heloisa Ramos que era detentora dos direitos do Graciliano, a mulher dele. E a gente montou lá na Faculdade Paulista com o intuito de: puxar uma galera que já fazia teatro, puxar pessoas que já atuavam na cidade e integrar isso com o Universidade Integrada, que era o projeto. Que eram alunos da própria cidade, da faculdade, ou pessoas da cidade que queriam desenvolver uma atividade na area. E foi muito legal, muito legal mesmo. A gente ficou em cartaz lá durante três meses, uma coisa que não se pratica no ABC; não existem temporadas teatrais aqui. E ai surgiu o lance de: ‘meu, por que a gente não funda uma Companhia?’
Para os artistas da Companhia, M.A.T.I.L.D.E. é mais do que um nome, é um Movimento Artístico para Transformação Integrado pela Liberdade, Direitos e Entretenimento. Ocupando o prédio da Faculdade Paulista de Serviço Social, o grupo montou depois de Vidas Secas, em 2005, o espetáculo Romeu e Julieta segundo a M.A.T.I.L.D.E., inspirado na obra de William Shakespeare, a partir de uma tradução feita por Marina Fossa e com adaptação da Cia, que chegou à época, a ter 53 integrantes participando das atividades do grupo.
Adeptos das siglas e refletindo a respeito do movimento teatral da região do Grande ABC (compreendida como as sete cidades: Santo André, São Bernardo, São Caetano, Diadema, Mauá, Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra), os integrantes da Companhia desenvolveram o projeto chamado A.N.T.R.O. (Atores necessitam de trabalho, respeito e organização).
Marcio: Um dos nossos objetivos com a M.A.T.I.L.D.E. era agremiar todos os coletivos que fazem arte num só teatro. Pra que todo mundo se assista, se veja, saiba o que está acontecendo e fomente a cultura da região.
Reverberando a ideia de conhecer os trabalhos realizados na região e como ainda ocupavam o prédio da Faculdade Paulista aos finais de semana, a Cia criou o ABC na M.A.T.I.L.D.E., a fim de ceder espaço para apresentações de outros grupos. O projeto durou três meses, com apresentações de 19 companhias diferentes e com direito a debates, ao final dos espetáculos, sobre o fazer teatral na região. Alimentados por essas discussões, os integrantes da M.A.T.I.L.D.E. decidiram dar mais um passo. Ou decidiram fincar o passo. Pesquisaram. Falaram. Conquistaram alguns olhares tortos. Colecionaram polêmicas. De alguma maneira estremeceram o chão. Montaram o espetáculo Terra, em que os atores diziam “na lata” aquilo que pensavam e ecoavam algumas das reclamações, sobre o funcionamento da cidade, que ouviram dos munícipes durante o processo de pesquisa para a produção.
Erike: A gente criou uns seminários, dividimos a América Latina em diversos setores: geografia, história, cultura, política, enfim. Fizemos vários seminários e desenvolvemos um espetáculo chamado Terra, que foi um espetáculo que a gente estreou no antigo Teatro Fábrica, teatro coletivo em São Paulo. Viemos pra cá, fizemos São Caetano, fizemos uma temporada em São Bernardo, fomos para o Festival Nacional de Teatro de Guaçuí, ganhamos uns prêmios legais lá, no Espírito Santo.
Marcio: Segundo eles nós ganhamos o Festival, né?!
Erike: É, enfim. (risos) Um espetáculo que deu muito resultado, mas que deu muito problema pra gente, porque a gente... Como eu disse é uma cidade provinciana, assistencialista, extremamente clientelista, reacionária ao máximo, então, tudo o que você diz aqui dentro, principalmente quando você vai pro público, eles te veem como um inimigo. Acho que hoje vem mudando. Eu sou bem otimista, mas eu acho que antigamente ela se dividia entre amigos e inimigos. É, é verdade. E em alguns momentos a direção, não a instituição, mas a direção da Fundação das Artes nos via como inimigos, digamos assim. E o Terra gerou uma polêmica absurda, a Secretaria de Cultura chamava a gente pra conversar, mas foi fundamental a gente ter feito aquilo, porque ai criou-se uma espécie de um diálogo. Mesmo que seja conturbado, criou-se um diálogo com a Secretaria de Cultura, com a administração. Eles não entendiam porque a gente fazia aquilo.
Evas: Muita gente chegou a dizer que era panfletário em alguns momentos.
Hoje os artistas entendem que o espetáculo foi um passo necessário, inclusive para abrir espaços de diálogos com o poder público depois da poeira abaixada. A Companhia cresceu. Os artistas aproveitaram para fazer uma reavaliação dos propósitos do grupo. Queriam uma sede própria e, por isso, em 2009, 13 pessoas locaram uma oficina mecânica abandonada, onde hoje funciona o Universo Cultural da M.A.T.I.L.D.E., um centro cultural privado, mantido por 9 pessoas e que abre espaço para que outros grupos apresentem seus espetáculos no ABC paulista. Além disso, cederam o espaço e participaram das discussões a respeito da criação da lei do Conselho Municipal de Cultura, em que o diretor da Companhia, Erike Busoni, foi eleito representante na area de teatro.
Erike: Esse Conselho Municipal hoje tem uma comissão técnica desenvolvendo a Lei do Fundo Municipal de Cultura. Se nós formos seguir as regras da Federação, a regra do Governo Federal, 1% do orçamento tem que ser para o Fundo. 1% dessa cidade são 8 milhões de reais. 8 milhões de reais para cultura nesta cidade é muito, não existe demando hoje pra isso. O Fundo Municipal de Cultura tem que ser deliberado pelo Conselho Municipal de Cultura. O Conselho Municipal de Cultura de São Caetano é o primeiro do país com 2/3 da sociedade civil e eleitos pela sociedade civil. Então, quer dizer, a gente conseguiu muita coisa, por mais que as pessoas tenham dito: ‘Ah, a M.A.T.I.L.D.E. fez o Terra’. O Terra foi muito bom, porque ele veio construindo tudo isso. Acho que fez com que nós conseguíssemos construir tudo isso. Porra, alugar um espaço e fazer a primeira reunião aqui dentro, com Secretaria, com representante da própria Fundação, com sociedade civil, pra desenvolver a lei do Conselho Municipal, pra posterior desenvolver a criação do primeiro Fundo Municipal de Cultura da cidade e que isso seja deliberado pelo Conselho que é eleito pela sociedade civil, porra, a gente consegue criar, de uma vez por todas, nesse município, uma democracia participativa e não representativa como sempre foi.
Mesmo sabendo que ainda existe uma fila de pessoas que não concordam com o discurso do grupo, mesmo sabendo que aquilo que falam de alguma forma ainda gera polêmica, a M.A.T.I.L.D.E. decidiu continuar tocando o barco, traçou metas em longo prazo e passou a investir na organização de ações dentro do espaço do Universo Cultural, como o Sarau, que vai para a 18º edição, e o projeto ABC na M.A.T.I.L.D.E., que acontece de dois em dois anos. Também investem na parceria para a produção de espetáculos na região com patrocínio e apoio de profissionais de outras cidades a fim de estabelecer um plano de carreira para os integrantes do grupo.
Erike: Em 2010, no ano passado, a gente fez um convênio com a Secretaria do Estado da Cultura e fizemos um espetáculo com a Norma Bengell, dirigido pelo Emílio Di Biasi. Um convênio e com apoio da Sabesp, produzido aqui pela Companhia da M.A.T.I.L.D.E. e mais um parceiro. Onde ai a gente resolveu estabelecer um plano de carreira para os atores da M.A.T.I.L.D.E.. Então, dois atores foram fazer contrarregragem nesse espetáculo. Ainda o ano passado, desenvolvemos o Casting, com Caco Ciocler, com Proac, com Banco do Brasil, com Net, apoiando através de lei Rouanet, com Porto Seguro, onde a galera da M.A.T.I.L.D.E. foi fazer técnica. Foi produzido aqui e, assim, a gente vai traçando um plano de carreira de também grandes produções. Não digo grandes produções comerciais. Eu digo grandes produções daquelas que a gente quer realizar.
Além do investimento em grandes produções, a M.A.T.I.L.D.E. também participa de um coletivo de grupos do ABC com o intuito de debater as necessidades do movimento, como a criação de leis de incentivo para as sete cidades. Cada reunião é realizada em um espaço diferente, tem duração de duas horas, com direito a 15 minutos iniciais para as lamentações e 15 minutos finais para a divulgação dos trabalhos. Todas as reuniões são fotografadas e, posteriormente, são organizadas e compartilhadas as atas dos encontros e as pautas para os próximos debates. Estes encontros são abertos para todos os grupos das sete cidades, desde que os participantes estejam prontos para colocar a mão na massa e colaborar efetivamente para a organização do movimento regional.
Os matildeiros se organizaram. Hoje conseguem manter o espaço funcionando e ter projetos aprovados com grandes apoiadores. Como é o caso da nova produção A tempestade.
Erike: Somos patrocinados pela Eletrobrás no espetáculo A tempestade, de Shakespeare. Dizem que é a última peça que ele escreveu, enfim, pelo menos pelos estudiosos. Direção do Emílio Di Biasi, projeto que a gente conseguiu patrocínio, com os atores da M.A.T.I.L.D.E. e mais 14 convidados. A gente reuniu uma puta equipe: música do André Abujamra, luz do Davi de Brito, figurino da Beth Filipec, direção do Emílio, com cenário do André Cortez. Uma equipe super legal. Produção daqui da M.A.T.I.L.D.E. mais dois parceiros que são duas produtoras independentes, C4 e Escritório das Artes. Toda a produção vem pra cá, por isso da reforma urgente, porque a gente começa a ensaiar dia 10 de março.
23 de fevereiro. 23h40. Os botões de voltar, avançar e pausar foram usados uma centena de vezes. Muitas palavras ficaram guardadas no gravador. Eles falaram intensamente. Agora meus ouvidos estão cansados. Olhando pela janela, às 23h46, vejo que não há indício de chuva forte para esta noite de sábado. Algumas pessoas adoram chuva, outras detestam. Atualmente algumas pessoas temem sofrer com os estragos que uma tempestade pode provocar. Mesmo sem ser especialista em previsões do tempo, posso dizer que, dentro de alguns meses, a região do ABC será invadida por uma tempestade. Proteja-se, prepare seu guarda-chuva ou, se preferir, saia de casa para se molhar.
A entrevista foi preparada no sábado, mas só foi publicada depois que o tempo virou.
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